sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Se había perdido en su propia oscuridad.


Ela havia se perdido na própria escuridão. Perdia-se todos os dias num mesmo grito.
Um dia acordou, com os cabelos desgrenhados, e encostou os pés no piso frio. Eram três da madrugada, e soprava um vento gelado entre as árvores que se insinuava pela branca e fina cortina do quarto. Era uma casa de campo grande, isolada do caos urbano, no topo de uma colina bem verde. Durante o dia, assumia uma aconchegante conformação bucólica, mas à noite era simplesmente lúgubre, mas o tom depressivo daquelas sombras a encantava , e à medida que o luar entrava pela janela ela se sentia mais viva.
Porém, naquela noite, não foi assim. Os pés caminharam sobre o piso frio até em frente ao espelho da parede oposta à cama. Ela mirou-se sob a luz do luar que iluminava seus contornos. Seus dois grandes olhos eram duas circunferências brancas em meio à escuridão do recinto. Piscou-os uma vez , e então percebeu com assombro: estava perdida. Absolutamente perdida. Isolada do mundo, excluída dos próprios pensamentos, ela sentia como se fosse um corpo vivo, mas que o coração estivesse trancafiado em alguma outra parte. Ela não se encontrava. Sentia-se como se houvesse penetrado em um perigoso labirinto que a aspirava para um universo cheio de dúvidas. Cheio de receios. Cheio de revoltas.
Repousou uma mão sobre o espelho e notou que o calor da mesma produziu um pequeno contorno de vapor sobre o vidro. Sim, estava viva. Sim. Ela sonhava , mas eram sonhos de asas cortadas, sangrantes. Procurava desesperadamente praias com sóis que nunca se punham, auroras eternas, procurava encontrar pássaros feridos e poder curá-los e soltá-los um dia perto do mar, sorrindo. Procurava sujar as unhas de terra em jardins cheios de flores, lamber dedos sujos de sorvete numa rua qualquer, sorrir sinceramente com alguém, brigar pelo último gole de refrigerante, gritar músicas cafonas dentro de um carro, acordar querendo ver o sol nascer no lugar mais distante e ir com alguém, e gritar com alguém, e festejar com alguém.
Procurava ter os pesadelos mais pueris e os desejos mais loucos de infância, sentir os ouvidos de alguém ouvindo seu coração bater, procurava crescer, procurava saber como era a ilusão das cores. Queria pintar um arco-íris nos olhos de alguém, sentir o suor dele como se fosse tinta, que pintasse seu corpo, que concordasse em ir junto com ela aos mais depravados destinos, onde junto seriam dois perdidos, dois loucos, duas serpentes, duas gotas de sangue, duas crianças. Sonhou com os mais tenebrosos amores e os mais encantadores medos. Queria alguém que a ajudasse a consertar suas bonecas quebradas. Queria alguém que pudesse enxergá-la bem dentro de sua pupila.
E enxergando as próprias meninas chorosas de seus olhos, ela percebeu. Não estava perdida porque não encontrava seu caminho. Mas porque não havia encontrado alguém corajoso o suficiente para percorrê-lo com ela. Se sentía perdida dentro de su propia oscuridad. Se sentía perdida, hasta que él llegó con la luz en la mano.

sábado, 7 de agosto de 2010

Agridoce.


Eles haviam combinado de ver o sol nascer na praia. Ela estava sentada na areia, e ele andava ao longe pela orla. O céu era ainda dominado por azul lápis lázuli preguiçoso da madrugada, e havia um frescor paradisíaco no ar que ela respirava. Era o ar da manhã que ela tanto adorava que fê-la sugerir a ele a verem o sol nascente naquele lugar tão lindo. Segurou um pequeno graveto com suas mãos de menina e desenhou rabiscos anárquicos na areia. Seus pés afundavam os dedos na areia fria enquanto ela estava sentada. A maré estava baixa, e as ondas repicavam pequenas lá longe, muito longe.
Os pensamentos dela voavam em espirais enquanto ela se indagava porque estava ali, porque enfim a vida tinha decidido transformar seus mais débeis sonhos em vívida realidade. Por que, em meio a tanta dor e lágrima e sal no mundo, ela havia sido a escolhida, a escolhida a ser feliz? O seu medo em perder aquela doçura de uma hora para outra era tão grande que ela agarrou aquele graveto como se fosse o seu destino materializado em suas mãos. Olhou o mar, sempre mar, sempre constante. A eternidade de suas ondas a acalmava momentaneamente, até que uma nova onda de pavor não invadisse sua consciência.
Ela observou o corpo dele caminhar pela orla. Ele dava pequenos chutes nas espumas de mar que caíam sobre seus pés e mantinha um ar contemplativo no rosto. Estaria ele exatamente com o mesmo medo que ela? Estaria ele com medo de que uma hora para outra garras de fera rasgassem aquele cenário idílico que os dois haviam construído? Ele se mantinha andando, cabisbaixo, ao lado da água. Agora, o mar soprava um vento frio contra os dois. Eles estavam separados fisicamente, mas unidos pelas mesmas filosofias. Ligados pelos mesmos gritos.
Sua pele branca ficou arrepiada e ela abraçou as próprias pernas. Sua vontade por ele era tanta que ela raspou os dentes na pele de seu joelho. Observou-o com a boca na própria pele, e percebeu, naquele momento, que ela queria tê-lo não fisicamente, mas sugá-lo, absorver sua alma, colocar as mãos em seu coração e banhar-se da essência dele, de tudo que ele emitia. Ele havia lhe dito, numa madrugada enquanto ela dormia : "Nenhum sonho é melhor que essa realidade." Ela nunca lhe contou que havia ouvido aquilo, mas naquela noite ela dormiu derramando uma lágrima em seu travesseiro.
Agora que ela lembrava dessas palavras preciosas, ela não conseguia se conter. Ele jogava um pouco de água fria no rosto, enquanto ela estava chorando. Ela chorava, de soluçar, enquanto ele corria até ela com um sorriso ingênuo no rosto. Conforme ele se aproximava dela e percebeu que ela chorava, o sorriso dele se desmanchou numa expressão de dúvida. Sentou-se ao lado dela:
- Por que chora?
Ela olhou para ele, os olhos rubros de tanto choro, a cabeça repousando sobre os próprios joelhos. Ele entendeu aquele olhar. Desfez aquela posição semi-fetal que ela mantinha com seus braços, e abraçou-a.
- Venha cá. O sol vai nascer. E eu e você vamos vê-lo brilhar.
A cada doce frase que ele soltava, o pânico tomava conta do seu espírito. Ela não conseguia ouvir aquelas palavras e aproveitá-las, cada doce delírio era proseguido de um pavor incalculável de perder aquele encanto. Ela não podia mais reter aquele arranhão dentro de si. Soltou com uma voz suplicante:
- Oh, eu tenho medo...
E sem que ela pudesse imaginar aquela resposta, ele disse, os olhos mais profundos que ela já havia visto:
- Eu também tenho medo. E é por isso que eu trouxe isso.
E tirou de uma sacola uma manga madurinha, fresquinha, a fruta que ela tanto gostava.
- Para você sorrir e se esbaldar .
Ela começou a chorar de novo. Os dois se abraçaram na areia, enquanto os primeiros raios do sol despontavam no céu. Ele segurou os cabelos dela levemente, querendo prendê-la com ele para toda a eternidade. Entre sol, céu, sal e manga, eles eram duas crianças num verão que nunca acabou.

domingo, 25 de julho de 2010

Take 1

numa tarde entediante
parei na frente da vitrine
para olhar um brinquedo
que não via há tempos

me sentia estranha
voando ao passado
como um pássaro
na contramão

mas o som da buzina afasta as sombras,
e mordo um chiclete inocente
vendo que nem tudo está perdido,
nem tudo é torpor e nostalgia
porque a cena acaba de ficar dourada
com ele me chamando, com voz de música folk

quando a noite cair
vamos subir no topo daquele prédio em construção
enquanto os outros dançam e acendem suas fogueiras
e vamos ficar lá, sentados, contra o vento

e eu vou saber, sem ouvir uma palavra
que eu sou seu reflexo nesse espelho torto
eu sou ele do avesso e sem conseguir explicar
ele me ama e muito

Corta.

terça-feira, 1 de junho de 2010

A pérfida arte da auto-sabotagem.


Não tenho, ultimamente, a menor inspiração para escrever qualquer texto narrativo ou com um pingo de tom poético. Forcei-me, alguns dias, a encontrar um tema que fosse de valia, mas todos só me traziam enfado. Não consegui, simplesmente, encontrar tema algum, e fiquei entediada.
Passaram-se os dias, andei refletindo sobre a constante cobrança que fazemos de nós mesmos, seja a respeito de coisas tão rotineiras como um texto de um blog, como em relação a eventos realmente importantes. O assunto murmurava em minha cabeça, mas sem alguma nitidez específica. Apenas sussurrando em algum canto.

Hoje, após assistir a Vicky Cristina Barcelona pela segunda vez, pude vê-lo com um olhar menos curioso e mais crítico, e enfim refletir sobre alguns temas que eu ainda não havia percebido que esse filme aborda. E aquele assunto que até então apenas cochichava em minha mente pode adquirir um timbre agora mais audível : tudo é a respeito da pérfida arte da auto-sabotagem.

Sim, pérfida. É a palavra perfeita. Se tiverem sugestões para alguma melhor, por favor, digam-me. Fico aterrorizada com a PÉRFIDA capacidade que temos de destruir nossa própria auto-estima e irritar a nós próprios com pequenas angústias todos os dias. Você sabe que é um grão-mestre da arte da auto-sabotagem quando a única pessoa que realmente consegue estragar o seu dia é você mesmo. E é o que todos nós fazemos, uma vez ou outra.

A auto-sabotagem se faz presente não apenas com as cobranças excessivas que fazemos em ser o mais rico,o mais bem sucedido, o mais culto, o mais sexy, o mais popular. Mas também porque simplesmente não percebemos que ser rico, bem sucedido, culto, sexy ou popular simplesmente não é, e nunca será, tudo na vida. A felicidade não reside nisso. Ela reside em algo que ninguém ainda soube, mas definitivamente, não em conquistas. Se conquistas construíssem felicidade, não veríamos tantos bem afortunados, belos, cultos e interessantes cometendo suicídio , usando drogas, reclamando de migalhas.

Pois bem, vamos ao filme. A maioria dos que assistem gostam muito de debater a respeito de Maria Elena ou Cristina, que são, para muitos, as personagens mais intrigantes da trama. À primeira vez que o vi, já não consegui ver realmente tanta cor na interação das duas, mas nessa segunda vez pude concluir realmente que a personagem que sela todo o filme, e que tem mais teor dramático é, sem dúvidas, Vicky. Vicky é a garota que sempre planejou sua vida para que esta fosse a mais perfeita possível, e ao ter encontrado o homem perfeito e a carreira perfeita, percebeu que enfim, tinha a vida dos sonhos. Porém, esse sonho se desestabilizou quando ela finalmente encontra Juan Antonio, o pintor boêmio, interessante, que tinha todo um novo mundo de possibilidades que ela, amante ferrenha das artes, estava louca para conhecer. A partir de então, ela passa a nutrir uma paixonite pueril por Juan Antonio, enquanto o noivo se esforça para agradá-la. (Aliás, Vicky sofre daquela tolice de achar que só porque alguém é atraente e tem o mesmo padrão cultural que você, essa pessoa já a sua alma gêmea. ) Quando ela enfim tenta passar uma tarde por Juan Antonio, num incidente desagradável que envolve Maria Elena tentando atirar nos dois, ela percebe a loucura que está fazendo. Entretanto, continua alimentando o assunto em sua memória.

Vicky é o símbolo da auto-sabotagem. Amarrou-se durante toda vida à obrigação de ter a vida perfeita, o homem ideal, a carreira fantástica. Mas Vicky, por ter tanta obsessão em ser mais feliz, foi a que mais sofreu ao conhecer Juan Antonio. Tudo porque o mundo artístico de Juan, e os clichês sedutores que ele dizia, pareciam ser para Vicky mais "felicidade" do que aquilo que ela estava vivendo no momento. De repente, aquela era a vida perfeita - a vida despreocupada, as tardes de verão em Barcelona, a liberdade cultural e comportamental européia. Vicky alimentava esses sonhos adolescentes enquanto seu noivo proporcionava-lhe afeto e uma vida confortável. Mas aquilo não era mais felicidade. Ela queria ter uma vida gritantemente deslumbrante. Como se isso, afinal, fosse necessário!

Qual o problema em não ser , realmente, a mais feliz das criaturas? Ter uma vida emocionante, cheia de aventuras e loucuras, dá um trabalho insuportável. Você precisa acordar todos os dias com idéias mirabolantes que dêem "todo um colorido" ao seu dia , ou então conhecer alguém interessante, comer um prato exótico, viajar a um lugar absurdo, pular de pára-quedas, transar com alguém estonteante e todas essas imagens que Kodak, Coca-Cola, Marie Claire e Playboy construíram para fazer com que você, um dia, queira se matar se jogando da ponte mais próxima. Imaginem o quão intragável deve ser conviver com alguém como Juan Antonio: você tem de ser a mulher fatal, a diva estonteante, a louca endiabrada, a poeta dos sonhos, gritar e ter crises intempestivas de humor, e estar sempre com uma idéia extravagante na cabeça, porque senão ele pode se entendiar. Isso, para mim, é tortura.

Admitir que é possível - e perfeitamente normal - não ter a vida mais extraordinária da Terra nos tira um grande peso da consciência. Quando você aceita que pode sim, reclamar da sua vida, e que seus dias podem sim, ser uma constante reticência com um ou outro ponto de exclamação, você pára de planejar eventos e festinhas insanas, cansa de idealizar e consegue, finalmente, desfrutar da calmaria que é ter uma vida NORMAL. Ninguém, absolutamente ninguém, tem a obrigação de ser incrivelmente feliz no mundo. Você pode acordar , colocar os pés nos seus chinelos, e murmurar um salutar "Que ódio que eu tenho dessa rotina" que está tudo bem. Ninguém vai te culpar por isso. Você não precisa se culpar por isso. Com exceção de situações realmente graves e extremas que você realmente precisa solucionar, o resto pode ser vivido de forma passiva e leve. Infelizmente, a sociedade, a cultura, a mídia e você mesmo exigem que você tenha uma vida incrível para ser incrível.

Não, não. Você pode ser incrível sendo você mesmo. Tomando aquela xícara de café meio frio enquanto assiste seriados antigos e manda às favas a ditadura da felicidade, você é a mais feliz das criaturas.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Sem palavras

Cada frase dita é uma vontade não realizada. Cada “Eu te amo” é a falta de um abraço encorajado ou um beijo apaixonado somente imaginado. Palavras, nada. Uma pergunta, insegurança na conclusão própria, receio do desconhecido, de descobrir o mistério sozinho. Um convite, medo. Receio de expor o querer puro e inocente, da aceitação ou do temor da solidão. Palavras, o triunfo da derrota. Palavras, nada.

Por pouco não sou vencido por essa praga. Mas aqui não há palavras. Meus dedos teclaram o “F”, teclaram o “A”, teclaram o “Z”, o “E” e o “R”. Há materialidade na sobreposição do red, do green e blue do monitor. É uma extensão da minha essência. Como uma música, uma pintura, um soco na cara. É criação, pois palavras, nada.

Portanto, não diga que me ama ou odeia. Passe na minha casa. Espero um jantar pago, um beijo ou carta de despedida, um grito de desespero, um empurrão no peito. Não comente esse texto, não estou interessado, não é necessário dizer nada. Se escrever um bilhete, é ele próprio o que importa. Não é nem mesmo seu conteúdo, mas o seu peso. Então, não me diga nada, pois serão só palavras.

segunda-feira, 22 de março de 2010

Les oiseaux ne sont pas des oiseaux.

Marie fumava seu melhor cigarro , sentada à mesa minúscula de um café igualmente diminuto de Montmartre. Observava o mercado de quadros e livros velhos que se estendiam por toda a calçada oposta. Uma criança indiana chorava violentamente, porque queria uma revista de Asterix, enquanto a mãe, provavelmente sem dinheiro suficiente para comprar criações de Uderzo e Goscinny, observava um jogo de xícaras com pires lascados na barraca ao lado, indiferente ao clamor do filho.

Um cão que poderia ser confundido com um setter inglês tinha uma pata dianteira machucada e lambia a valeta da calçada , esperançoso que o cimento pudesse ser comestível. Marie riu, e ao mesmo tempo sentiu-se constrangida em ter capturado aquele momento de pura decadência daquele animal. Marie tinha a péssima mania de humanizar animais, principalmente cães e pássaros. Acreditava que eles também tinham planos e objetivos , e que seus sonhos caninos e orníticos pudessem ser frustrados tais como os de seus parentes humanos. O cão fixou seus olhos moles para ela, como se pudesse sentir que ela estava observando seu débil comportamento na calçada. Marie sentiu um golpe no estômago. Sentia-se um monstro por ter servido de platéia risonha para o triste espetáculo que o animal protagonizava.

- Maman , je vous en prie, le bande-dessinée!

O menino indiano ainda queria o gibi. Marie achou aquela obstinação por um mero gibi de um heroísmo nato. Quando criança, Marie tinha poucas obstinações. Desistia do que queria ao primeiro "não" que ouvia do pai . Não tinha forças para insistir. Não tinha paciência para relutar.

O cão continuava naquela mesma calçada, dessa vez observando um pássaro que voava de árvore em árvore, em um ritmo frenético. Marie pôde sentir, tal como o cão, a extrema arrogância que o pássaro exibia por farfalhar livremente entre as árvores. Era a perfeita analogia da pirâmide social : o cão com a pata ferida que lambia a valeta, e o pássaro que batia suas as asas com uma festividade cruel sobre seus olhos. O cigarro de Marie havia acabado e apagado entre seus lábios. Pegou o último cigarro que restava no maço. O clique do velho isqueiro Zippo confundiu-se com um rouco "Salut" que ela já havia ouvido em algumas outras situações.

- Martin. Salut. - ela fitou aquele rapaz alto, moreno, com uma leve barba e óculos de aros finos, ofertando-lhe um quarto de sorriso.

- Salut. - Ele disse de novo, esperando que ela tomasse alguma atitude socialmente aceitável.

Ela acendeu o cigarro de novo, porque com a fria saudação, o fogo se havia esvaído. Um novo clique do Zippo, e um novo chamado daquela voz rouca.

- Posso.... posso me sentar com você?

Marie balançou a mão que segurava o cigarro em direção à cadeira . Direcionou novamente o cigarro à boca, segurou-o por uma fração de segundos entre seus dentes, para depois finalmente incorporá-lo entre seus lábios e tragar o morno tabaco. Seu pequeno êxtase nicotínico acabou quando ouviu uma risada.

- Marie, ma chérie Marie, você sempre fez isso, não é mesmo?

Ela ainda fitava o cão do outro lado da rua, e virou-se para aquele rosto masculino.

- "Isso" o quê?

- Segurar o cigarro com os dentes uns segundos antes de tragá-lo de verdade. Eu sempre observei esses pequenos detalhes em você , sabe.

- Isso é psicopatia, sabe. - ela soltou a fumaça tanto pela boca, como pelas narinas.

Marie zombava de Martin, chamando-o de excêntrico e psicopata, mas na verdade , era aquela mania dele de observar seus microscópicos detalhes que fez com aquela se encantasse por aquele homem. Marie sempre julgou ser um quadro realista. Uma pintura comum, um rosto comum, mas ao ser observado a 15 centímetros com olhos semi-cerrados, detalhes incríveis poderiam ser vistos, pequenos segredos que construíam seu innerself, pinceladas vertiginosas que criavam uma pessoa. Marie acreditava que só poderia ser verdadeiramente admirada se fosse vista bem de perto. Martin sempre a viu muito de perto, com sua lupa invisível.

Martin gargalhou:

- Ah, Marie!

Ela fitou Martin tão profundamente que ele pôde sentir sua retina sendo analisada por aqueles olhos verdes. Entendeu a mensagem daquele olhar ; ele deveria falar logo porque afinal estava interrompendo aquele precioso momento de solitude da moça, para podê-la então deixá-la em paz.

- Estava indo almoçar, quando vi você aqui, fumando sob esse sol infernal. Resolvi ver se está tudo bem com você.

- Está tudo bem. - ela notou que sua taça de vinho estava vazia. Ele, com sua capacidade irritante de ler os pensamentos dela, também notou o mesmo.

- Pedirei uma garrafa de Chardonnay para nós dois. Você quer almoçar? - Marie continuou observando o cão e o mercado, e ele calou-se, já dirigindo um aceno para o garçom.

Ele voltou-se novamente para ela.

- Faz tanto tempo que não nos vemos. Um dois anos, penso eu.- sua tentativa de dialogar com Marie era tão débil quanto as lambidas do quase-setter inglês.

- Fico feliz em saber que você ainda sabe contar. - ela tomou um gole do vinho, demoradamente.

- Ah, maman! La BD, maman, LA BD!

Martin observou o menino indiano que implorava, com um francês sofrível, para que a mãe comprasse-lhe o gibi do Asterix. Riu abertamente:

- Esses imigrantes deviam se colocar no lugar deles, ao invés de quererem ser franceses e ler o que franceses lêem.

Marie precisou fazer um esforço maior para conseguir deglutir aquele gole de vinho. Mesmo assim, seu esôfago se contraiu em demasia, e ela sentiu uma forte dor compressiva na garganta.

- O que você disse? - ela fitou-o , com os olhos verdes arregalados.

- Marie, esses indianos, coitados. Estão longe de ser parecer com um francês, fisicamente falando. E querem ter a mesma cultura de um francês. É de dar pena.

- Eu não consigo acreditar que um estudioso de sociologia e direito como você possa ter um pensamento tão imbecil... Minto. Eu consigo acreditar. Um pensamento assim, vindo de você, pouco me espanta. - Ela tragou mais uma vez o cigarro, dessa vez sem segurá-lo com os dentes antes da tragada.

- A diferença entre eu e você, Marie, é que eu não sou hipócrita, nem demagogo. Convenhamos, aquele garoto nunca vai entender o que é o legado cultural e histórico da França. - Martin já havia pedido seu prato, mas Marie não o acompanhou no pedido.

- A diferença entre eu e você, Martin, é que você é absurdamente patético. Uma pessoa pobre em termos de maturidade. Você não tem argumentos. Você só tem frases patéticas, mas nenhum argumento que justifique todos os seus impropérios.

- Desse jeito, você me lembra do jeito com que falava comigo quando estávamos juntos. - ele riu.

- Eu falava desse jeito com você exatamente pelo fato de estarmos juntos. E estou falando desse jeito novamente agora , porque infelizmente estou cara-a-cara com você outra vez. - ele parou de rir.

- Marie, veja só... Eu... Eu não gostaria de remoer o passado. Eu queria aproveitar a oportunidade para lhe dar uma ótima notícia.

Ela encarava a ponta acesa do próprio cigarro, os olhos vesgos.

- Vou me casar no fim do ano. Você está convidada.

O menino indiano, agora com lágrimas secas escorridas pelo rosto, começou a seguir a mãe a uns 20 passos de distância. Concluía, por fim, que não ganharia qualquer gibi, de qualquer autor que houvesse.

- Parabéns. - respondeu, friamente.

- Você não vai?

- Por que deveria ?

- Você foi uma parte muito importante da minha vida, Marie. É certo que gostaria que você fosse.

- É certo que não fui, de forma alguma, uma parte importante. Porque se um dia houvesse sido, você não haveria me trocado pela Anne. Não que isso me preocupe ou me torne triste, mas é apenas uma constatação lógica para provar a falta de importância que eu tinha na sua vida.

- Marie, se não funcionamos como casal, pelo menos funcionamos como amigos. Por favor, vá. Anne ficaria contente.

Marie devolveu à mesa a taça de vinho que estava encaminhando à boca. O pássaro que serpentinava arrogantemente sobre a cabeça do velho cão , agora também piava agudamente, para o desespero auditivo tanto de Marie, como de seu platônico amigo canino.

- Você vai se casar com ela?

- Sim. No fim do ano. - Martin tinha deleite em repetir que seria, afinal , no fim do ano. Como se fosse uma cronologia maligna para Marie, que indicasse a ela que em um número certo de dias ela teria, então, de admitir que havia perdido para Anne a conquista do coração de Martin.

- Veja só como a vida é irônica.

- C'est la vie, ma chérie Marie.

Ela segurou violentamente o pulso de Martin. Odiava ouvi-lo proferir aquela frase. Era a frase que ele costumava dizer logo após afirmar: "Eu te amo. Fortemente. E nunca vou deixar de te amar. C'est la vie, ma chérie Marie." Era a frase que ela mais adorava quando estavam juntos, e agora, era a frase que emoldurava a mentira, o engano, a revolta.

- Nunca mais diga essa frase perto de mim de novo, seu estúpido.

Martin, que agora adquiria uma coloração púrpura, libertou seu pulso das mãos de Marie e ajeitou a gravata nervosamente. Agora era ele quem examinava a retina da moça:

- É por isso que larguei você. Sempre inteligente, sempre esperta, sempre com o melhor dos caráteres e a melhor das intenções. Isso me cansava profundamente.

- Como é?

- É isso mesmo. Eu me cansava em ver o quanto você sempre quis ser perfeita, em vê-la progredir, enquanto tinha de permanecer afogado na sua medíocre sombra.

Martin começava a piscar freneticamente , exatamente como fazia sempre que ficava nervoso. Marie levantou-se, e já segurando a bolsa, observou que Martin , com o rosto excessivamente vermelho, já tinha garfo e faca em punho, mesmo com o prato vazio à frente, como uma criança tola que espera ardentemente pela comida.

- Você não estava afogado na minha "medíocre sombra". Você se afogou na própria mediocridade. E continua debatendo-se na água todos os dias. - e apagou o cigarro no prato vazio de Martin.

Segurando-se para não derramar um grito choroso , ela caminhou lentamente até a banca de gibis à sua frente. Comprou uma revista de Asterix e Cleópatra, enquanto tinha a desagradável sensação de estar sendo observada por Martin do outro lado da rua. Enquanto pagava a revista, sentiu um pequeno peso macio repousar sobre sua sandália. Olhou para baixo. O cão de olhos moles encarava-a com sua moleza costumeira, com sua pata machucada sobre o seu pé. Depois, como se estivesse verdadeiramente constrangido em observá-la, ele desviou o olhar, e tornou a encarar o asfalto.

Marie soltou um alto soluço e duas grossas lágrimas caíram de seus olhos. Deixou o troco com o vendedor da banca, e colocou o velho cão no colo. Segurando o com um braço e a revista com o outro, correu arfando em direção ao ponto de ônibus, até conseguir entregar a revista ao franzino menino indiano. Fitaram-se , enfim , os três. Todos com os olhos moles.

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Por que o futuro da humanidade é assexuado


Baseado nos tempos "moderninhos" e sem barreiras sexuais que estamos vivendo, um dia um amigo me disse acreditar que o futuro da humanidade é bissexual. Ninguém será de ninguém, a orgia será generalizada, todos sairão com todos e o compromisso e o relacionamento sério serão apenas notas de rodapé de textos de antropologia e sexualidade, tal como as famosas alcoviteiras da era medieval. Eu, por outro lado, acredito exatamente no oposto : o futuro da humanidade é assexuado. E tenho vários argumentos para isso.

É fato que existem muitíssimo poucos tabus hoje em dia. Talvez, em nível sexual, não haja mais nenhum. A humanidade já viu de tudo - ou 99% de tudo, seja do pior ou do melhor. Hoje existe espaço para qualquer bizarrice em termos de relacionamento , basta você procurar no lugar certo (ou seria o errado?) . Então, discussões a respeito do assunto, que antes poderiam alarmar pessoas por dias e dias, hoje são escancaradas em telejornais às 20 h , horário em que crianças ainda estão acordadas, e só conseguem causar sono e tédio nas famílias. Ninguém se abala se a filha de 07 anos está vendo uma professora de pole dancing instruir as suas alunas na televisão. Ninguém se choca. O sexo virou rotina. Sexo, sexo, sexo.

O movimento feminista e o sexandthecityista também colaboraram para que qualquer erotismo se tornasse um perfeito enfado. Todas agora são muito loucas e fogosas e transam na posição origami psicodélico, é só você querer. Todas são beldades, também. O último Carnaval foi um ótimo exemplo para mostrar que hoje todas as mulheres têm silicone, todas são loiras, todas são malhadas , todas são bronzeadas e todas são "gostosas". Um exército de gostosas. Bundas e bundas que passam em frente a olhos masculinos bocejantes. Corpos e rostos todos iguais. Perdeu-se a individualidade do corpo: aquela em que uma tem o seio pequeno, outra os cabelos mais crespos, outra uma pele mais branca. Todas - e todos, já que a banalização corporal atingiu a classe masculina também - têm as mesmas curvas e os mesmos cabelos. O mesmo cérebro. A mesma conversa. Como disse um professor meu, hoje em dia todas são tão identicamente perfeitas que para ele a charmosa é aquele com um dente um pouquinho torto, a sexy é aquela com o cabelo crespo, a bonita é a com um corpo normal, e não masculinizado de tanta academia. Um exército de mulheres gasta quantias obscenas de dinheiro para tornar seu corpo cada mais libidonoso, mais ousado, mais desejável, mais sexy. Fico pensando se não é tedioso para um homem ir a uma festa e ver 90% das mulheres mostrando 95% das pernas e 100% do decote. Os seios deixam de ser o mistério a ser revelado e viram apenas uma carne cotidiana. Mais sexo, mais sexo, mais sexo.

As relações, por sua vez, tornam-se cada vez mais fúteis e efêmeras. Existe pouco interesse em manter um relacionamento sério e com sentimento. Mulheres , querendo ser modernas ou fingindo ser, afirmam que não querem nada além do sexo. Homens , aproveitando o espaço que as mulheres proporcionam, também não vêem razão para perder tempo com um relacionamento. Surgem relações de 2, 3 dias. Enjoa-se fácil. Namoros são terminados porque "ela não transava do jeito que eu queria" ou "ele não quer transar comigo todo dia". O sexo é a prioridade, e não o complemento do relacionamento. É ele, de novo. O sexo.

A obsessão pelo sexo tornou-se tão doentia que é difícil hoje em dia manter um papo decente e minimamente cerebrado com alguém por aí. É difícil encontrar uma pessoa do sexo oposto que realmente queira uma conversa desinteressada - porque muitas vezes, quando essa conversa ocorre, todos nós já sabemos qual é o interesse : é o sexo. É tremendamente complicado achar um único alguém que tenha um papo suficientemente culto e uma vida deliciosamente vivida para você voltar para casa e pensar "Puxa, como ele é interessante." Todos são iguais. Todos são a mesma genitália burra de sempre. Pênis burros e vaginas burras que vão a micaretas e fazem a mesma dança do "Oi tudo bem qual seu nome o que vc curte costuma sair quantos anos você tem " para se acasalarem, se despedirem e procurarem uma outra genitália burra com a qual possam acasalar. São conversas e pessoas tediosas que não me despertam o menor interesse. É doloroso olhar no calendário e pensar : "fazem tantos meses que não encontro alguém de valia". Aquele alguém que coloca um pingo de tinta vermelha em pilhas e pilhas de folhas em branco. Hoje as folhas brancas se acumulam. Elas gritam "SEXO!" cegamente, e nada mais conseguem enxergar.

É por isso tudo que acredito que o futuro da humanidade é assexuado. Assexuados célebres como Morrissey, Moby e o nosso querido Sheldon Cooper têm justificativas indiscutíveis dos benefícios do não-envolvimento com qualquer ser humano. Não sou partidária do assexualismo e ainda gosto de homens, e ainda estou interessada em relacionamento com eles. Mas é muito lógico e compreensível ser assexuado. Sex is overrated. Existem tantas coisas mais incríveis do que o sexo pelo sexo no mundo, por que raios ele deveria ser assim tão superhipervalorizado? É isso que defendem os assexuados. Eles não se interessam no sexo. Sexo é para os fracos. Apenas uma humanidade desesperada por prazeres carnais se entrega a eles, ao invés de se dedicar às artes, à ciência e a causas filantrópicas, de forma integral e voluntária. Os assexuados não são fracos assim.

Portanto, levando em conta o banho que levamos todos os dias de conversas sobre sexo, reclamações sobre sexo, programas sobre sexo, lingerie, camisinha, strip tease, como fazer seu homem enlouquecer na cama, como dominar sua mulher em 10 dias, como deixá-lo louco , como deixá-la subindo pelas paredes, e peitos siliconados, e bundas avantajadas, e requebro, e rebolation, e aumente seu pênis em 10 dias, e viagra, e himenoplastia, e isso e aquilo, etc e tal, continuamos atordoados de tanto sexo, sexo, sexo. Sentindo sono, sono, sono.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

A estrada de ladrilhos amarelos



Dorothy deixou Oz e voltou ao Kansas.
E descobriu que nenhum homem possuía cérebro. Nem coração. E muito menos, coragem.